
MELIANTE, por Foca Cruz
– Temos de chegar lá, Jéssy!
BAM!
BAM!
BAM!
Três tiros na nossa direção.
CRASH!
Pedacinhos de tijolos voam por cima do meu chapéu. A Jéssica está vazia e eu já começo a sentir saudades do Fúlvio. Paro atrás de uma caçamba de ferro no canto da rua. Me agacho e bolo uma estratégia.
– É o seguinte, baby. Esses caras não vão acertar a gente. São meio ceguetas. A gente vai sair correndo até a porta de emergência daquele prédio no fim do beco. Meto o pé nela e fugimos pelo terraço. Lá em cima eu sei que tem uma saída conectada com o prédio do lado.
– Boa ideia, Linhaça! Mas você já combinou com os safados pra eles não acertarem nenhum tiro na gente?
– Haha! Você é demais, amorzão. Eles não vão acertar. Você sabe que não. Vamos lá. Se liga. Vai ser no três.
1
2
VAI!
A porta está aberta e não preciso dar um chutão. Em compensação a saraivada de tiros foi bizarra. Nunca vi tanto projétil caindo perto da gente. Parecia chuva de aço. Pela barulheira os caras devem ter dado pelo menos uns quinze tiros cada um. Por sorte nenhum deles nos acertou. Pulo pra dentro do corredor escuro do prédio e caio com a Jéssica enrolada no casaco. Rolo feito um cão que perdeu a rinha e continuo correndo. Não tenho a menor ideia do que estou fazendo e nem aonde vai dar esse final de noite. Mas uma coisa pelo menos está do nosso lado. Esse é o prédio da Ana Escovinha. E ela vai nos receber por amor.
Eu e Jéssica continuamos correndo pelo subterrâneo do prédio da Ana e ouvindo o barulho dos safados diminuindo atrás de nós até pararem. Ou pelo menos eu acho que pararam. O que dá na mesma. É que sem munição e com a pata esquerda fodida eu não estou dando pro gasto. E o olho esquerdo ainda tá saindo sangue por causa do socão na saída do Gato Preto.
– Porra, Linhares! Cê tá a capa da gaita!
– Relaxa, amorzão. Amanhã vai ficar tudo bem. A gente acha a saída e cai fora. Vai ser fácil.
– Sempre é fácil.
Acendo um cigarro.
Os infindáveis corredores dão numa porta de ferro. Abro. Dá pra garagem do prédio.
– Maravilha!
– Ei, man, podíamos simplesmente pegar um desses carros e
– Nem fodendo! Sem o Inércia eu não volto pro escritório!
– Ok. Mas o Inércia tá lá na Cruz Machado com o pneu furado e o vidro da frente quebrado e um tiro no radiador e os caras ainda ficaram com a Derruba Delinqüente.
– Ficaram nada. Eu escondi a fitinha aqui ó. Um pouco antes de começar a putaria eu saquei a fitinha do toca fitas.
– Menos mal.
– E tem outra, Jéssy. O Inércia é a única viatura que ainda roda com toca fitas. Quem vai querer ficar ele? A piazada hoje tá afim de CD DVD GPS a porra toda.
– Nesse ponto você tem razão. Ninguém vai querer arrancar o som do carro. A não ser que fosse por vingancinha. Haha!
– Mas aí nós vamos até o inferno pra achar o cretino.
– Se já não fizeram, né, man?
– Ô, amorzão, cê tá do meu lado ou do deles?! Pô!
– Foi mal. Tava pensando nas possibilidades.
– Relaxa. Depois a gente pega o Inércia. Duvido que alguém vai querer fazer alguma coisa com ele.
Seguimos pela garagem e paramos na frente da porta que dá pro hall do elevador.
– Qual andar?
– Não lembro. Acho que é o 15.
– Espera um pouco. Escuta.
Barulho de quatro pessoas caminhando. Pelo cheiro são os caras que estão perseguindo a gente. Mas não são os mesmos. Afasto um pouco a porta de ferro e dá pra ver que realmente são quatro caras. E estão fardados como PMs.
– Aê, amorzão, acho que são os caras do Fala-Fina.
– Como é que cê sabe?
– Olha a marca no pescoço. É igual a dos caras de Guaíra.
– Putz! É mesmo. São eles!
– Devem tá indo no mesmo lugar que a gente.
– Veja pelo lado bom. A Ana não tem como não atender a gente.
– Hehe! É verdade.
O elevador chega e os caras entram.
– Qual andar chefe?
– 15.
Eu olho pra Jéssica que olha pra mim. Ela sempre tem a razão.
– Deixa os caras subirem e aí a gente pega o elevador e para no 12. Depois continuamos de escada. Tô achando que vai dar merda.
– Beleza.
Pegamos o elevador e descemos no 12. Subimos correndo as escadas. A confusão ia começar de novo. Paramos na frente da porta de acesso ao 15º andar e dá pra ouvir os caras conversando com a Ana. O sotaque carioca de novo.
– É o seguinte, dona Ana. Tâmo sabendo que a senhora está abrigando dois elementos estranhos aí no seu domicílio.
O cara falando desse jeito lembra aqueles policiais marrentos. Rato de praia. Só que os manés não nasceram no Rio.
– Me desculpe, Seu Policial, mas aqui não tem ninguém.
– Então a senhora não vai estar se importando que a gente esteja dando uma olhada aí pelo seu domicílio, correto?
Os outros dois riram.
– Que dois, amorzão? Cadê o terceiro elemento?
– Puta merda, Linhaça! Não olha pra trás. Acho que ele tá aqui. Respira… relaxa.
Devagar.
Bem devagar fecho a mão direita.
Finco os pés no chão.
Miro o socão.
Miro na cabeça.
Vou virando.
Virando.
Com o canto do olho já vou adiantando o prejuízo.
Devagar.
Bem devagar começo a mover a coluna.
Viro a cabeça um pouco.
E mais um pouco.
Olho pra trás e num movimento ninja
PAW!
Não tem ninguém.
– Ufa!
– Mas ele deve tá dando a volta pelas escad
– Não! Melhor! Ele já está no apartamento. Entrou por outro lugar e a gente não viu! Caralho! Vamos ter de dar um jeito nesses caras nem que seja na cara de pau.
Tiro o casaco e a camisa.
– Que cê vai fazer, Linhares?
– Vou de mais louco que o louco.
Amarro a camisa na cabeça tipo uma bandana. Deixo o casaco e o chapéu ali num cantinho. Tiro também os sapatos e as meias. Fico só de calças e descalço.
– E eu fico aonde, man?
– Vou te amarrar com uma meia na canela. Pode ser?
– E tem outro jeito?
Amarro a Jéssica na canela com uma das meias e saio bem na boa de dentro da porta corta fogo. Não sei muito bem o que dizer. Vou no improviso. Os caras estão ali na porta. Parados feito duas colunas. Até parece que estão me esperando pra continuar com a estória. Chego falando alto e meio que entrando ao mesmo tempo.
– E aí, Ana. Minha querida Ana. Como vai meu amor?
Meto um sotaque de hippie na voz e já chego tascando um beijão na boca da Ana.
– Desculpe o atraso, monamour. Mas é que eu e Jéssica estávamos ali embaixo num papo longo e agradável sobre como a vida nos faz assim tão vazios e desesperados por um pouco de carinho e paz no coração. Você como são as coisas, meu bem. Ela não pode subir. Diz que ia atrás de uns macrobióticos e de um pouco de ferro pro almoço. Então resolvi subir pra matar as saudades, tá ligada?
Falo esse monte de merda e dou uma piscadinha com o olho direito. A Ana fica parada. Não está entendendo porra nenhuma. Continuo.
– E os amigos, moncher? Quem são os amigos? Tudo bem aí, galera?
Eu devo estar parecendo um retardado falando desse jeito lento e arrastado meio mongol.
O chefinho rompe o silêncio.
– Aê, dona, quem é o cabeça de alfinete?
– Desculpem-me, policiais, esse é o meu
– Namorado. Vim de Lisboa. Portugal. Muito prazer. Eu me chamo Carlos. Carlos Aphonso Sillllva. E os senhores?
Fico com a mão estendida e a cara de trouxa olhando pra ele que não move um cílios sequer. Apenas se volta pra Ana com ar de reprovação. Eles deviam estar num esquema que eu estava atrapalhando. Como eu já estou pra dentro do apartamento e eram eles que têm de entrar já vou rápido pra cozinha e começo a fuçar nas coisas pra um cafezote.
Eles entram. Ficam todos de pé no meio da sala. Os três. O que é pior. Por que ainda falta um safado. A Ana vem até mim. Fica em silêncio. Me entrega uma caixa de remédios e volta pra sala. Passo o café. Na sala eles discutem algo sobre armas drogas prostituição. O mesmo papo de sempre. Sei lá o que não sei que lá do Fala-Fina.
– Opa! Ouviu baby?
– Fala-Fina!
Depois da Chacina em Guaíra o único sobrevivente foi ele. Fiquei sabendo que ele estava montando um negócio de carros no interior do Paraná. Umas concessionárias de carros montados no fundo de quintal com peças que vinham do mundo inteiro. Parecia um negócio bacana. Me chamou a atenção porque o Inércia ia mesmo precisar de uma recauchutagem completa quando voltássemos pra casa
– Que cê tá fazendo aí?
Um dos Capangas veio espionar o meu café.
– Café. Sabe o que é? Uma frutinha vermelha que cresce num pé e que usamos a semente e que depois de torrá-la faz-se uma infusão com água quente para se obter um liquido maravilhoso que costumeiramente chamamos café.
– Chama o que? Que cê tá falando, cara?
Num movimento ninja meto o dedo do meio rápido na garganta dele. Ele começa a engasgar. Meto uma gaze molhada num negócio que tinha dentro da caixa de remédio. Nem o Florestano deve saber o que é. O cara dá uma baforada no paninho e cai. Seguro ele pra que não faça zona na cozinha. Arrasto o corpo até a lavanderia. A Jéssica comemora como se fosse um gol. Urra de alegria na canela. Com um pouco de esforço faço a alavanca na janela subindo num banquinho que tem na frente do tanque e taco o corpo lá pra baixo. Ainda dá tempo de ver o pacote estatelar lá no chão.
– Acho que agora a polícia vem.
– Boa, man.
Continuo servindo os cafés. O ratão grita lá da sala.
– O Zé, cadê você? Que vocês tão fazendo aí, caralho?
Pego a garrafa térmica e umas xícaras e vou até a sala.
– Olha o cafezinho! Posso servir os convidados, Ana querida?
– Claro, Linha… Aphonso!. Claro, Aphonso!
– Toma aqui o café. Onde está o outro amigo?
Um dos caras vai até a cozinha chamando pelo amigo. O chefe já está puto. Estamos adiando a merda. Felizmente eu carreguei a Jéssy com alguns projéteis que a Ana meteu na caixa de remédios. Ela tava ligada que ia dar merda. Mando todo mundo pro chão.
– Todo mundo pro chão!
A Jéssy vem pra minha mão mais feliz que bala em boca de banguela.
– Desculpa te deixar lá dentro tanto tempo, baby.
– Não dá nada! Vamos mandar chumbo nesses idiotas!
– Calma, amorzão. A gente precisa saber onde está o quarto cara.
É lógico que nenhum deles se atirou no chão. Senão eles não seriam capangas. Cada um saca seu próprio revólver e começa um tiroteio monumental no meio da sala da Ana. De cara eu já me jogo pra trás do sofá. O chefão dos ratos de praia dá um mortal de costas.
– Caralho! Coisa de ninja, hein, Jéssy!?
– Pois é, pelo jeito as coisas estão melhorando pro Fala-Fina com esse negócio de venda de carros.
O ratão cai perto do corredor e fica por ali atirando. A Ana se arrasta pra baixo da mesinha do telefone. O cara que restou leva um tiro logo de cara e fica todo cagado no meio da sala.
Por um instante paira o silêncio. Como se as ondas sonoras estivessem indo embora feito um mar que esvazia pelas janelas da sala em direção ao horizonte. Olho pela janela e lá se vai o mar com todo o seu barulho e levando todas as pessoas da cidade com ele. E elas caem pelas janelas de braços erguidos com os olhos fechados gritando coisas que não podemos entender. Aí um menino lá embaixo chama meu nome e diz que é pra eu ajudar a achar a mãe dele. E o nome dele é o nome da criança que eu vi no Bar do Tony ontem me pedindo algo pra comer.
PAM!
PAM!
PAM!
– Bóra, Linhaça! Acerta ele!
– Calma! Tô calculando o tiro.
– Olha só, o ratão acertou um tiro na boca da Ana.
– Putz! Que merda! Eu até tava gostando dela.
– Vamos pegar o safado, então! Nem que seja pra pagar a porra do café.
PAM!
– RATÃO, CÊ TÁ FURANDO A PAREDE TODA MAS NUNCA VAI ME ACERTAR! VOCÊ É MUITO RUIM!
Grito pra ele.
– Haha! Ele vai ficar puto, né amorzão?
– Claro! Igual você quando alguém grita desse jeito contigo.
De repente o cara não está mais lá atrás da parede do corredor. Não vem mais barulho de lá. A sala ficou silenciosa. Corro detrás do sofá pra onde o safado estava e de fato ele não está mais lá.
– Amorzão, escuta isso. A respiração ofegante.
Tinha alguma coisa respirando rápido. Muito rápido. Rápido pra caralho e bem perto de nós. Mas eu não conseguia ver nada
VLÓSH!
Isso sempre acontece quando me descuido. O monstrengo estava agarrado ao teto com suas patinhas de ratazana. Ele esperou eu me descuidar e
PLAW!
Me deu golpe certeiro na nuca. Ainda bem que ele é sozinho e eu tenho a Jéssica. Por que bem na hora que a sua bocarra gigante cheia de dentes podres estava engolindo a minha cabeça
PAM!
a Jéssy acertou seu OneShot bem no meio da fuça do safadão. Um projétil de prata bem no meio daqueles olhinhos pequeninos e entupidos de ramela. As coisas dentro da cabeça dele redecoraram a sala com um vermelho muito intenso e cheio de fios e pingos. A bocona do rato ficou arreganhada com a linguona pendurada pra fora e com uns pedaços de dentes semi pontiguados e podres espalhados pela sala. porque sim ele cresceu dois metros depois da transformação. Por que sim ele cresceu dois metros depois da transformação.
– Aspecto interessante o desse sujeito. Vou pegar uma amostra pra levar pro Florestano. O Fala-Fina anda fazendo modificações genéticas na estrutura do povo e é bom a gente se dar conta do que está acontecendo por aí.
– E o quarto cara, Linhaça?
– Sei lá, deve ter fugido de medo. E ainda tem os caras que tão caçando a gente também. O melhor agora é a gente sentar aqui e tomar o cafezote e dar uma contemplada na cidade e esperar a polícia. Aí a gente sai disfarçado de PM e depois pedimos pra rebocar o Inércia até o escritório.
– Ok.
FIM